tarsila
Tarsila do Amaral, "Autorretrato I", 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.

Tarsila do Amaral, "Autorretrato I", 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.
Tarsila do Amaral, “Autorretrato I”, 1924, óleo sobre papel-tela, 38.00 cm x 32.50 cm. Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo.

Em São Paulo, no dia 6 de novembro de 1925, Tarsila do Amaral escreve para o jornalista Joaquim Inojosa, no Recife:

Meu trabalho tem sido enorme, ultimamente. De abril para cá tenho uns 10 quadros novos, quase todos terminados. Já se foi o tempo em que uma Paquita sorria na tela com 8 horas de pinceladas. Trabalho hoje com a paciência de Fra Angélico para que o meu quadro seja lindo, limpo, lustroso como uma Rolls saindo da oficina.[1]

Este parágrafo possui informações interessantes: em primeiro lugar, a referência à rapidez com que antes Tarsila produzia suas paquitas – alusão às “espanholas”, já comentadas em artigo anterior[2] –; em seguida, o tempo que agora demorava para levar a cabo suas novas produções que lhe exigia a perseverança de um artista-frade do século 15.

Essas referências sugerem que, em se tratando de suas primeiras pinturas, Tarsila as produzira com uma rapidez de ação que subjugava a integridade da sua produção a preocupações não propriamente pictóricas. A essa velocidade com que pintou suas paquitas, Tarsila opunha agora a delicadeza artesanal da pintura mais tradicional com o objetivo de, paulatinamente, atualizar sua linguagem, transformando a pintura num objeto “lindo, limpo, lustroso como uma Rolls”.

Pintar como um frade (ou uma freira) do Renascimento e, ao mesmo tempo, associar a ausência deliberada de qualquer índice de manualidade em suas pinturas ao acabamento de um automóvel – a Rolls –, é retirar delas a marca de autoria, igualando a pintura a um produto mecânico, industrial. E tal aspiração, sabe-se, Tarsila absorveu de um dos seus principais parâmetros encontrado em Paris, a produção do pintor francês Fernand Léger que apostava em uma pintura comprometida com os índices da sociedade moderna: o objeto industrial, a vitrine, o cartaz e a fotografia[3].

Tarsila Amaral, "Autorretrato (Manteau Rouge)", 1923, óleo sobre tela, 73 x 60,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Tarsila Amaral, “Autorretrato (Manteau Rouge)”, 1923, óleo sobre tela, 73 x 60,5 cm. Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Apesar da carta para Inojosa datar de novembro de 1925, Tarsila não deu início à “limpeza” ali aludida somente a partir daquele ano. A intenção de associar sua pintura a um objeto industrial vem antes, de 1923. E, sendo desse ano seu Autorretrato (manteau rouge)[4], essa obra pode ser entendida como um símbolo de transformação de Tarsila como artista e como mulher: é quando ela deixa de produzir pinturas “modernas”, retratando-se como uma espanhola voluntariosa e passa a projetar-se como uma grande dama a produzir um tipo de pintura especial, uma síntese elegante e contida entre a calma e sobriedade de um Fra Angelico e a assepsia anônima de um objeto industrial.

Tarsila, portanto, não mais elege como projeção de si a paquita audaciosa. Agora que de fato se profissionaliza, o parâmetro torna-se um homem, um homem quase santo, um herói católico, Fra Angelico. Nada de Angelica Kauffmann ou Sofonisba Anguissola, ou qualquer outra pintora profissional do passado (que, muito provavelmente, Tarsila nem conhecida). Nem mesmo Marie Laurencin – uma das artistas mais prestigiadas da cena internacional de então – e sua pintura “tão feminina”, poderiam servir-lhe como parâmetro. O ideal agora era unir a “limpeza” dos produtos industrializados e da pintura modernista de Léger ao ascetismo, à devoção à arte, entendida como uma espécie de religião, digna de Fra Angelico.

Interessante essa nova situação enfrentada por Tarsila: a hora em que, finalmente, entende o que poderia ser a arte do seu tempo – impessoal, lustrosa como um automóvel – seu parâmetro maior torna-se um artista homem do primeiro Renascimento. Por isso é que em Autorretrato (manteau rouge) projeta-se como uma espécie de aparição: distante, hierática, quase uma santa ultramoderna.

Uma imagem ainda assim misteriosa? Sem dúvida, mas agora com um mistério quase divino, não mais inteiramente carnal, como a maioria de seus autorretratos como espanhola. Em Autorretrato (manteau rouge), a opção pelo moderno – verificável nas angulações da imagem – se mistura à sua representação tradicional. Mais do que “cubista” – como chegaram a descrevê-lo – Autorretrato (manteau rouge) é uma típica obra de um realismo sintético, somente possível após a experiência cubista. Um realismo que conta, é verdade, com certa “liberdade” angulosa, mas cuja composição centralizada é devedora da grande tradição do retrato.

Autorretrato (manteau rouge) deve ser entendido como o passaporte para seu ingresso definitivo no ambiente da pintura moderna, por meio de uma obra concebida dentro dos parâmetros, não das vanguardas históricas, mas do Retorno à Ordem internacional: moderno, mas subserviente à dimensão da beleza neoclássica, supostamente atemporal, pautada na “nobre simplicidade e uma grandeza serena tanto na atitude como na expressão”, como queria o esteta alemão J.J. Winckelmann, ainda no século 18[5].

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Aquela mulher distante e majestosa, representada em Autorretrato (manteau rouge), contrasta e, ao mesmo tempo ecoa as descrições das extravagâncias de Tarsila que, a partir de 1923, começa a usar e abusar da engenhosidade dos estilistas Jean Patou e Paul Poiret, responsáveis pelas vestes mais originais (e caras) de Paris. Em seu livro Tarsila do Amaral, sua obra e seu tempo, Aracy Amaral transcreve alguns depoimentos que atestam o interesse que os trajes de Tarsila – sempre de autoria dos dois estilistas citados –, causavam na cena elegante da capital francesa. Sergio Milliet assim se recordará do sucesso mundano da pintora:

Lembro-me de certa noite em que, no Ballet de Champs Elysées, toda a plateia se voltou para vê-la entrar em seu camarote, com a negra cabeleira lisa descobrindo e valorizando o rosto e os brincos extravagantes quase tocando-lhe os ombros suavemente amorenados.[6]

A própria Tarsila, deslumbrada, relata para a família o seu sucesso parisiense: “Ontem fui com Betita a um baile na Ópera. Fiz sucesso como mulher linda (…)”[7]. Por outro lado, não foi sem um tom de reprovação velada que Georgina Malfatti, irmã de Anita, também depôs sobre a vaidade extravagante de Tarsila:

Lembro-me dela no teatro, no Trocadero, com uma capa escarlate, forrada de cetim branco, um chapéu de vidrilhos, grande e negro. Em Paris, onde as pessoas se vestem discretamente, era uma sensação a vaidade de Tarsila vestida por Poiret, ao seu lado Oswald, de camisa roxa.[8]

Apesar da fama alcançada por Tarsila por ter assumido uma persona extravagante, chamando a atenção para suas roupas e adereços, não devemos esquecer que, a partir de 1923 – e com a única exceção conhecida de uma foto no Cap. Pollonio, de 1925[9] –, a maioria das fotografias que se conhece da artista até o final daquela década, atesta o surgimento de uma imagem pública de extrema elegância. Uma elegância distante, tanto da excessiva simplicidade com que aparece em cenas prosaicas de seu cotidiano em anos anteriores, quanto de sua “versão espanhola”, visível em alguns de seus retratos fotográficos quanto em seus autorretratos. Por outro lado, também observando as fotografias não é possível atestar toda sua extravagância, tão comentada.

Em uma fotografia de grupo realizada a bordo do navio Frísia, em dezembro de 1923, Tarsila é vista sorridente entre brincos enormes, cabelos presos, vestindo um traje elegante e discretamente sofisticado. Durante a Revolução de 1924, na Fazenda Sertão, a pintora aparece em uma foto usando o mesmo traje com que foi fotografada a bordo do navio, meses antes. Essa prática de repetir roupas aparecerá documentada novamente em fotografias: em 1926, na foto promocional de sua individual em Paris, a pintora surge com o mesmo vestido que usaria sete anos depois, quando de sua conferência no Clube de Artistas Modernos de São Paulo, sobre a cartazística soviética.

Essa repetição de trajes borra a imagem de uma Tarsila apenas exibicionista e perdulária. Apesar das posses da família e do acesso ao que mais sofisticado havia em bens de consumo na época, a partir de 1923 as fotos passam a documentar o interesse da artista em encontrar o equilíbrio entre ostentação e discrição, sinalizando para algo que começava a se tornar cada vez mais importante para ela: sua produção como pintora e o papel que ela deveria e poderia exercer no ambiente artístico brasileiro. Essa repetição de trajes indica que passa a se afirmar na pintora uma atitude menos titubeante que, ao invés de continuar oscilando entre a simplicidade doméstica do vestir e suas encarnações de paquita fantasiosa, opta por exercer sua condição de milionária de gosto requintado e de artista segura de seu talento direcionado agora para a constituição de uma obra pictórica ao mesmo tempo, moderna, brasileira e “clássica”.

Tarsila, tanto na arte como na vida parece ter atentado para a advertência que seu amigo Mário de Andrade lhe fez numa das cartas que lhe escreveu em 1923: “Creio que não cairás no cubismo. Aproveite deste apenas os ensinamentos. Equilíbrio, Construção, Sobriedade. Cuidado com o abstrato”.[10]

Se tais diretrizes são visíveis na produção da artista a partir de 1923, o mesmo se nota em sua nova persona, com exceção, talvez, de uma ou outra ocasião em que a sobriedade é substituída pelo desejo de ostentação.

É interessante como naquele período, Tarsila constrói um eu especial, pautado em suas próprias expectativas e naquelas que nela eram projetadas pelo meio social e artístico que passara a frequentar. Uma nova persona que, embora não tenha superado a dependência, tanto econômica como afetiva dos pais, parece se estabelecer dentro de uma crescente autoestima como mulher e artista.

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Em 1924 Tarsila produzirá a primeira versão de seu Autorretrato[11].

 

Alguns autores que se debruçaram sobre essa pintura foram unânimes em associá-la a certas esculturas de Constantin Brancusi e a fotos promocionais da cantora e dançarina norte-americana Josephine Baker[12]. Mas essa imagem também pode ser associada `a cartazística da época, que exaltava a mulher moderna – a nova consumidora –, e também às fotos promocionais de atrizes de Hollywood dos anos 1920 – como Gloria Swanson, Joan Crawford e Mirna Loy, entre outras.

Se tomarmos Danaïde, 1909-1910 ou mesmo Mademoiselle Pagany II, 1920, obras produzidas por Brancusi[13], os pontos de contato entre essas esculturas e o autorretrato de Tarsila são, por um lado, a ausência de textura ou gestos ali impressos (neste sentido também lembram a Rolls) e a extrema síntese formal que, no limite, transforma, tanto a cabeça da artista quanto as peças citadas de Brancusi numa espécie de forma ovoide primordial, arquetípica.

O mesmo pode ser dito se compararmos o Autorretrato da pintora com as fotografias de Josephine Baker e das atrizes de Hollywood. Em todas igualmente são privilegiadas, tanto a superfície “linda, limpa e lustrosa” da fotografia quanto a forma ovoide do rosto, em closes que ecoam e podem fazer reviver a Femme fatale do final do século 19. Porém, se a maioria dessas imagens exibe o rosto e o colo da retratada, ambos envoltos por outros elementos, como joias, mãos etc., o que chama a atenção em Autorretrato é que apenas o rosto ovoide de Tarsila se encontra na tela, centralizado entre brincos, rodeado pelo branco do tecido.

Uma composição que, antes de ser associada às esculturas de Brancusi e/ou às beldades de Hollywood e da Broadway estabelece vínculos diretos com um dos padrões iconográficos utilizados pela tradição para fixar a “verdadeira imagem” de Jesus Cristo: o Véu de Verônica, o Vera Icona.

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Existem algumas lendas que tratam da origem dessa “verdadeira imagem” – surgida por milagre sobre o lenço – e sobre muitos dos tecidos que reivindicam ser portadores da imagem milagrosa original – imagem produzida por contato da face do filho de Deus sobre o pano. Uma delas afirma que esse retrato tão especial teria surgido em Edessa, no norte da Síria, durante o reinado do rei Abgar. Existem duas versões para essa lenda, apontadas pelo estudioso alemão Hans Belting:

Por um lado se afirma que o rei Abgar ordenou que seu pintor realizasse um retrato exato segundo o modelo vivo, retrato que recebeu junto com uma carta manuscrita de Cristo. Por outro, é dito que o trabalho do pintor foi concluído de maneira milagrosa pelo próprio Cristo, que deixou seu rosto impresso no tecido[14].

A versão que acabou prosperando foi a segunda e este fato estaria ligado à importância que se dava à constituição da imagem de Cristo não produzida por mãos humanas – non manufactum em latim e acheiropoietos, em grego[15] – como uma estratégia para, também, segundo Belting, diferenciar as imagens de Cristo dos deuses pagãos, produzidos por mão humanas[16].

Outra lenda também importante é aquela que credita a uma mulher piedosa ter dado a Jesus, durante sua Via Crucis, um véu para que ele enxugasse seu rosto. Milagrosamente, quando a senhora – Santa Verônica – recebe de volta o véu, está estampado nele o semblante de Cristo.

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Por mais interessantes que sejam as várias lendas envolvendo as imagens “achiropitas” de Cristo, aqui nos interessa atentar para aquela que, surgida na Síria, foi depois enviada para Constantinopla, onde sumiu durante o saque da cidade em 1204. Após esse desaparecimento no século 13, várias pretensas reaparições da mesma imagem ocorrerão na Europa e mesmo em Constantinopla. Hoje acredita-se que ela é a versão que se encontra no Vaticano ou então na Igreja de S. Bartolomeo, em Gênova[17].

“O véu de Verônica”, Vaticano s.d. Foto: Reprodução

De fato, o que nos interessa sublinhar é a descrição que Belting faz dessa imagem de Cristo. Segundo o estudioso:

A tela […] do rei Abgar se difundiu em inumeráveis cópias e paráfrases. Todas elas coincidiam na ideia, mas na prática apenas compartilham um esquema básico que oferece ampla margem às variações. Ela poderia se caracterizar do seguinte modo: […] as imagens de Abgar são reduzidas à impressão do rosto e do cabelo sobre um espaço vazio que o tecido simboliza[18]

Como afirma o autor, esse padrão iconográfico irá reverberar por séculos, no âmbito da pintura ocidental, com variações significativas sem perder, no entanto, as características fundamentais: um rosto de homem com barba (longa ou não), quase sempre com cabelos compridos escorridos ao lado da forma ovoide. Um dado importante: na imagem “original” o rosto de Cristo está sem a coroa de espinhos. Isto não impediu, no entanto, que vários artistas produzissem o semblante de Cristo com aquele instrumento de tortura.

A partir da Idade Média esse padrão iconográfico se espalha produzindo variantes distintas e, muitas vezes, entrelaçando lendas sobre a origem do Véu. Duas obras com o título Véu de Verônica – do italiano Bernardino Zanganelli, produzida em 1500, hoje no Philadelphia Museum of Art, e aquele atribuído a Philippe de Champagne (1640c.), do Musée de Beaux-Art de Caen – apresentam o mesmo padrão iconográfico, sendo que o primeiro acrescenta uma coroa de espinhos e uma cruz atrás da cabeça retratada.

Muitos artistas, por outro lado, associaram a “verdadeira imagem” de Cristo também à representação de Santa Verônica segurando o tecido com que teria enxugado o rosto santo. Uma pintura anônima alemã, da primeira metade do século 15 – hoje na Alte Pinakotheke de Berlim, representa a Santa mostrando a imagem de Cristo aos anjos. Nesta obra chama a atenção como o artista tem como modelo a cabeça da obra conservada no Vaticano. El Greco, por sua vez, na segunda metade do século 16 também pintou uma obra do mesmo tema, hoje no Museu de Santa Cruz, em Toledo, Espanha.

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Desde o final da Idade Média e início do Renascimento, artistas, ao representarem o rosto de Cristo, produziram autorretratos de interesse. Albrecht Dürer, em 1500, realizou Autorretrato como Cristo, também pertencente ao acervo da Alte Pinakothek. Se Dürer não foi o primeiro a associar sua própria imagem ao Filho de Deus, com certeza, até hoje, sua obra é a mais reconhecida. Além dessa obra emblemática da pintura ocidental, atento para o fato de que alguns artistas, via fotografia, também se utilizaram da iconografia do Filho de Deus para desenvolverem autorretratos que devem ser entendidos como foto-performances. Dentre eles, talvez o mais antigo seja o fotógrafo norte-americano Fred Holland Day que, em 1898, produziu a sequência As sete últimas palavras de Cristo, hoje no Metropolitan Museum of Art, de Nova York. Mais recentemente, em 1972, o artista plástico e performer italiano Luigi Ontani produziu a foto-performance Ecce Homo d’aprés Guido Reni, pertencente a uma coleção particular em Modena. No Brasil, ao que se conhece, o artista Rogério Ghomes teria sido o único a associar, em 1996, sua própria imagem ao Santo Sudário, em uma instalação intitulada Profano Sudário, hoje pertencente à Fundação Cultural de Curitiba[19].

“Autorretrato como Cristo”, 1500. Albrecht Dürer. Foto: Reprodução

Fora do âmbito da pintura e da foto-performance, nos últimos anos, no teatro ou em outras manifestações, atores negros e atrizes trans têm representado a figura de Cristo – um fenômeno artístico e cultural que deve ser aprofundado[20].

Do levantamento realizado no âmbito da pintura, a única artista a se retratar como Jesus Cristo foi a norte-americana Erwin Gaela que, em 2003, produziu Autorretrato como Jesus Cristo, um díptico em óleo sobre tela, pertencente à coleção da artista.

Se Gaela foi a única artista mulher a se retratar como Jesus, não foi possível encontrar neste rastreamento iconográfico qualquer artista – de qualquer gênero – a se autorretratar como o Véu de Verônica, o que faz com que o Autorretrato de Tarsila do Amaral se torne ainda mais especial, não apenas no campo da arte brasileira, mas da arte internacional como um todo.

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O fato do Véu de Verônica guardar uma imagem produzida por contato nos remete à fotografia e sobre como ela era vista a partir do século 19, como que constituída a partir apenas do toque mecânico da luz sobre o objeto, sem mãos humanas – uma espécie de milagre. O estudioso francês Philippe Dubois, ao explicar a crença sobre a dimensão mimética da fotografia, durante o século 19, estabelece uma relação interessante entre ela e o Véu de Verônica:

A fotografia nelas [nas concepções da fotografia durante o século 19] é considerada como a imitação mais perfeita da realidade. E, de acordo com os discursos da época, essa capacidade mimética procede de sua própria natureza técnica, de seu procedimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem de maneira “automática”, “objetiva”, quase “natural” (segundo tão-somente as leis da ótica e da química), sem que a mão do artista intervenha diretamente. Nisso, essa imagem “aquiropita” (sine manu facta, como o véu de Verônica) se opõe à obra de arte, produto do trabalho, do gênio e do talento manual do artista.[21].

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Aracy Amaral, no livro citado, antes de se posicionar diretamente sobre o hábito de Tarsila copiar suas pinturas para eventualmente refazê-las (caso do Autorretrato de 1924), atenta para o gosto e prática da artista em copiar suas pinturas, guardando-lhes o “risco”. A autora reflete sobre a prática de muitos artistas desenvolverem “autocópias”, trabalhos em série ou mesmo obras com diferenciação progressiva. Para ela, Tarsila não se encontrava em nenhum desses grupos: “Tarsila, entretanto, […], não se enquadra, nem dentro do que se poderia definir como “série de trabalhos” nem como trabalhos em processo […]. O que nela notamos mais é um apego a determinadas formas […] ou determinadas estruturas […][22].

Esse interesse de Tarsila por formas que houvesse criado em um ou outro trabalho, ou por estruturas de ocupação do campo plástico que conseguira na concepção/produção de uma ou outra obra, fará com que ela não copie apenas aqueles trabalhos que mais a interessara, mas a maioria deles. Assim Aracy Amaral se pronuncia sobre o caso:

Além das autocópias em Tarsila, o fenômeno “decalque”, hábito que lhe vem do tempo do desconhecimento do desenho (anterior ao estudo com Pedro Alexandrino) não deixa de aparecer como um recurso de que a artista lança mão para preservar desenhos e quadros que se vendem e que guarda consigo, como uma menina guardava antigamente um “risco” de bordado a repetir eventualmente.[23]

Sem aprofundar as aparentemente óbvias relações entre a prática do “decalque” com as prendas de uma moça casadoura, levantadas por Aracy, chamo a atenção para a relação possível entre a fotografia e o decalque para se tirar o “risco” de uma imagem. Afinal, ambos os procedimentos se configuram por meio de contato. E o interessante é que Autorretrato parece ter sido produzido a partir da cópia do retrato fotográfico da artista, sobre a qual ela se debruçou para copiá-la em um papel de seda, para depois ampliar a imagem em uma folha de papel e, depois, sobre a tela definitiva.

Suponho que já nesse processo de passagem da fotografia para a pintura, a artista praticou um saber que deve ter adquirido por leituras ou conversas com artistas mais experientes: o fato de que, na tradução da fotografia para a pintura, o “correto” é deixar de lado o aspecto descritivo da imagem fotográfica para investir apenas em sua síntese – questão que, na década de 1930, Tarsila explicitará em uma crônica[24].

Mas não devemos esquecer: se o retrato de Tarsila possuía índices descritivos, sendo uma fotografia, ele mantinha as mesmas qualidades de uma Rolls: era linda, limpa e lustrosa. Guardava essas características de um objeto industrializado. Tarsila secou a dimensão descritiva do retrato fotográfico, mas passou para a tela a limpeza da superfície fotográfica: em Autorretrato o que vemos é uma imagem sintética e centralizada, sem nenhum índice mais evidente da “mão” da artista. Ou seja, de mão humana, o que significa que, em termos visuais, Autorretrato funciona como uma imagem que não é produto de mãos humanas, uma imagem achiropita.

Como mencionado, essas evidentes relações entre o Autorretrato de Tarsila e o “Verdadeiro Ícone” não foram detectadas pelos estudiosos da obra da artista. Mesmo Aracy Amaral, quando reflete sobre essa pintura, parece descrever uma fotografia, embora afirme que Tarsila “fuja” da fotografia quando produz sua obra. Uma fotografia ou o Véu de Verônica:

Mas, nessa repetição do autorretrato está também implícito um certo narcisismo, um “se querer bem” que também é característico de Tarsila. Autorretrato – sempre capa de seus catálogos – foge entretanto à doçura da expressão natural da foto e transpõe uma imagem transfigurada, figée na forma elíptica do rosto de colorido frio e irreal, quase uma máscara de beleza intocada e preservada.[25]

Tarsila do Amaral deve ter percebido a semelhança entre o resultado de sua pintura e o Santo Sudário que ela, como católica, conhecia. Ver a si mesma como Cristo pode tê-la enchido de um orgulho narcísico porque, de alguma maneira aquele autorretrato significava uma “evolução” de sua autoimagem: de uma Paquita inconsistente a uma monja, uma santa ultramoderna dedicada à causa da arte. E da santa suntuosa para o próprio Cristo, encarnação de Deus pictor.

Referências bibliográficas
Livros
– AMARAL, Aracy. Tarsila sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora Perspectiva/Edusp, 1975. Vol.1.
– AMARAL, Aracy. Tarsila do Amaral. Buenos Aires: Fundação Finambrás, 1998.
– AMARAL, Tarsila do Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral (org.: Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
-BELTING, Hans. Imagen y culto. Una historia de la imagen anterior a la edad del arte. Madrid: Akel S.A., 2009
– DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994.
– GOTLIB, Nadia Battella. Tarsila do Amaral a modernista, 2ª. São Paulo: Editora Senac,2000.
– MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
– POLLOCK, Griselda. Visión y diferencia. Feminismo, feminidad e historias del arte. Buenos Aires: Fiordo, 2015.
– SARTUNI, Maria Eugênia (Coord.Ed.). Tarsila. Catálogo Raisonné. São Paulo: Base 7 Projetos Culturais/Pinacoteca de São Paulo, 2008. 3 Vol.
– WINCKELMANN, JJ. Reflexões sobre a arte antiga. Porto Alegre: Movimento; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975, p. 53.
Artigos
– , CHIARELLI, Tadeu. “A caipirinha e o francês: Tarsila do Amaral e a devoração da modernidade via Fernand Léger. IN https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/a-caipirinha-e-o-frances-tarsila-do-amaral-e-a-devoracao-da-modernidade-via-fernand-leger/
– CHIARELLI, Tadeu. “Os autorretratos de Tarsila Parte 1: a espanhola” IN https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/autorretratos-tarsila/
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[1] – Carta de Tarsila do Amaral para Joaquim Inojosa, 6.11.1925. Apud AMARAL, Aracy op.cit. pág. 176.
[2] – “Os autorretratos de Tarsila, parte 1: a espanhola”, in https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/autorretratos-tarsila/
[3] – Sobre a presença da obra de Fernand Léger na produção de Tarsila do Amaral, consultar, entre outros, “A caipirinha e o francês: Tarsila do Amaral e a devoração da modernidade via Fernand Léger. IN https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/a-caipirinha-e-o-frances-tarsila-do-amaral-e-a-devoracao-da-modernidade-via-fernand-leger/
[4] – Coleção Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
[5] – WINCKELMANN, JJ. Reflexões sobre a Arte Antiga. Porto Alegre: Movimento; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1975, p. 53.
[6] – Sergio Milliet, “Artista de nossa Terra – III – Tarsila”, O Estado de S. Paulo, 17. 06, 1943. Apud AMARAL, Aracy, op. cit. p. 84
[7] – Carta datada de 4.2.1925 de Tarsila do Amaral para a família. In AMARAL, Aracy. Op. cit. p.161
[8] – Depoimento de Georgina Malfatti a Aracy Amaral. In AMARAL, Aracy. Op.cit. p.161.
[9] – Foto reproduzida em – “Os autorretratos de Tarsila, parte 1: a espanhola”, in https://artebrasileiros.com.br/opiniao/conversa-de-barr/autorretratos-tarsila/
[10] – Mário de Andrade. Carta a Tarsila do Amaral, em 16 de junho de 1923. IN AMARAL, Aracy. Op. cit.368. Se atentarmos para toda a fase pau-brasil de Tarsila, será visto que ela obedeceu ao amigo, na medida em que Tarsila constitui as pinturas daquela fase buscando sempre o equilíbrio, a construção e a sobriedade. Por outro lado, e dentro desse universo “clássico-moderno” tão caro ao modernismo paulistano. Segundo ainda Aracy Amaral (op. cit. p.121) em 1929, assim a artista iria se referir à sua viagem a Minas: “… Senti um deslumbramento diante das decorações populares das casas de moradia de S. João del Rei […] e outras pequenas cidades de Minas, cheias de poesia popular. Retorno à tradição, à simplicidade”.
[11] – Existem três versões desse autorretrato. O Autorretrato I, pintura, Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo; Autorretrato II,1926, pintura, Coleção particular, São Paulo e Autorretrato III, 1924, grafite e tinta ferro gálica sobre papel, Coleção particular, São Paulo.
[12] – Chamo a atenção para o texto já citado de Aracy Amaral e para Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico e São Paulo, Sergio Miceli (São Paulo: Cia das Letras, 2003).
[13]Danaïd pertence à coleção da Tate Liverpool e Mademoiselle Pagany II ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
[14] – BELTING, Hans. Imagen y culto. Una historia de la imagen anterior a la edad del arte. Madrid: Akel S.A., 2009Op.cit. p.278.
[15] – Em português seria Aquiropita ou Achiropita. Como se sabe, na cidade de São Paulo existe uma igreja de nome Nossa Senhora Achiropita. Ela faz referência à imagem milagrosa da Virgem Maria, também não produzida por mãos humanas, que teria aparecido em Rossano no sul da Itália. Sobre o assunto ler: https://www.achiropita.org.br/a-paroquia/historia-da-paroquia/porque-achiropita
[16] – BELTING, Hans. Op. cit.278.
[17] – Para mais detalhes, consultar, BELTING, H. op. cit.
[18] – BELTING, Hans. Op. cit.279.
[19] – Em 1997, por ocasião da participação de Rogério Ghomes na sétima edição da Bienal de Arte de Havana, escrevi para o catálogo do artista o seguinte texto, “O Profano Sudário: a produção de Rogério Ghomes no contexto da fotografia contemporânea brasileira”, posteriormente republicado em: GHOMES, Rogério. Preciso acreditar que ao fechar os olhos o mundo continua aqui. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2017
[20] – Nos terrenos da performance e do teatro, nos últimos anos o Brasil assistiu a uma escalada de preconceito (e agressões, inclusive física) a atrizes trans que interpretaram Jesus Cristo, como foi o caso de Viviany Beleboni que na Parada Gay de São Paulo, em 2015, performou a figura de Jesus. Renata Carvalho, atriz principal da peça “Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, da autora britânica Jo Clifford, no final da última década foi impedida de levar seu espetáculo em algumas cidades brasileiras. Sobre o assunto ler: ego,globo.com/famosos/noticia/2015/09/Viviany-beleboni-e-esfaqueada-e-assustada-fala-em-suicidio e entretenimento.uol.com.br/noticias/redação/2018/04/05/quem-e-renata-carvalho-a-atriz-trans-que-ousou-encarnar-jesus-cristo.htm. A representação de Jesus como mulher e também como um jovem negro causou protestos no Carnaval carioca de 2020, quando a rainha de bateria da Mangueira,…., desfilou como Jesus mulher no mesmo desfile em que a Escola apresentava um carro alegórico com a imagem de um Jesus como um jovem negro. hypeness.com.br/2020/02/mangueira-e-grande-rio-se-destacam-com-jesus-negro-e-defesa-do-candomle/
[21] – DUBOIS, Phillippe. O ato fotográfico. Campinas: Papirus, 1994, p. 27. (Os itálicos são do autor do livro). Em tempo: Dubois, em nota, aprofunda um pouco mais a relação entre a imagem “aquiropita” e a fotografia: “Lembremos que o Véu de Verônica (ou, caso se prefira ser mais histórico, o Santo Sudário de Turim) pode ser considerado, com sua “impressão em negativo”, com seu “efeito impressionante de realismo”, com seu valor de relíquia e de fetiche, como uma espécie de protótipo da fotografia: uma imagem obtida por impregnação direta do modelo no suporte, sem qualquer intervenção da mão no surgimento da representação (…)” – p. 54, nota 5. Em tempo: não por nada, em países católicos, Santa Verônica disputa com Santa Luzia o posto de padroeira dos fotógrafos.
[22] – AMARAL, Aracy. Op.cit. p. 229.
[23] – IDEM, p. 231.
[24] – Em 1936 Tarsila reflete sobre as diferenças entre a pintura e a fotografia e sobre como o pintor deveria discernir os detalhes da imagem fotográfica que deveriam ser transferidos para a pintura e aqueles que precisavam ser suprimidos. “Pedro Alexandrino”. Diário de S. Paulo, 17, novembro, 1936. In AMARAL, Tarsila. Crônicas e outros escritos de Tarsila do Amaral. Organização Laura Taddei Brandini. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. pág. 163 e segs.
[25] – IDEM, p. 227. Os itálicos são meus.

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